Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. Vinha do sul, dos lados de Pegões. Atravessou o rio, quase noite, na última barca que aproveitara a maré. Não comia há quase vinte e quatro horas. Trazia algum alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava, e uma voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado. Sob as águas escuras do rio, via passar os peixes a grande profundidade, cardumes de cristal e prata, longos dorsos escamosos ou lisos. A luz interior das casas coava-se através das paredes, difusa como um farol no nevoeiro. Meteu-se pela Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na igreja da Nossa Senhora da Oliveira, em direcção ao Rossio, repetia um itinerário de há vinte e oito anos. Caminhava no meio de fantasmas, de neblinas, que eram gente. Entre os mil cheiros fétidos da cidade, a aragem nocturna trouxe-lhe o da carne queimada. Havia multidão em S. Domingos, archotes, fumo negro, fogueiras. Abriu caminho, chegou-se às filas da frente, Quem são, perguntou a uma mulher que levava uma criança ao colo, De três sei eu, aqueles além são pai e filha que vieram por culpas de judaísmo, e o outro, o da porta, é um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva, dos mais não ouvi falar.
São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.
José Saramago, Memorial do Convento
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on domingo, 20 de junho de 2010
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