Sonoridade e significado

Posted by F. F. in ,

13 - Setembro (sexta).

De vez em quando, releio uma página do Eça. E é sempre o mesmo encantamento, a mesma misteriosa vibração da «palavra». Ninguém como ele conheceu as ocultas ressonâncias da língua. Os especialistas afirmam o «arbitrário» das palavras. É julgar a língua como uma articulação mecânica. Decerto o que o não parece deriva do que nela acumulámos de emotividade. Mas creio que um enorme número de palavras tem uma raiz onomatopaica, ao menos longínqua. No «ribombar» ou «cacarejar» é evidente. Mas por exemplo «lua» (moon, luna, sêlênê) não terá a sugestão de suavidade, ténue fluidez que tem algo de onomatopaico? A palavra «cola» e a mais popular «goma» têm a mesma sugestão, mas voltada para realidades diferentes. A «cola» é seca e a «goma» é viscosa. A primeira refere um efeito, a secura do que está colado; a segunda refere-se à própria qualidade do líquido (como o glue inglês - este, sugestionante do murmúrio do goma escorrente de um gargalo - , palavra onomatopaica também, um líquido viscoso, pastoso. Uma mulher «belo» é mais alta do que uma mulher «bonita» ou «linda», sendo que a «bonita» sugere uma nitidez de contornos como uma boneca, e «linda» sugere uma pequena estatura e um certo esplendor, talvez do olhar. Mas donde a «altura» da «bela»? Talvez do alongamento de e o l que prolonga a dicção. (Daí o «resplendor» de «linda» da conjugação do l e in que agudo e expansivo.) Do mesmo modo, uma mulher «formosa» é mais «redonda» ou mesmo mais «gorda» do que uma mulher «bela». E a sua beleza é mais «moral» que a da mulher «bela» ou »linda». Mas porque é que «calvo» não é muito cómico e o é «careca»? Talvez porque «careca» tem uma nitidez que sugere a rasa superfície de um crânio como bola de bilhar e «calvo» (alvo) sugere só a brancura desse crânio, dando o c a sugestão do «redondo» (calvo-cavo). Do mesmo modo «violino» ou »rabeca». A «conotação» das palavras, o seu valor emotivo, deriva da carga de sensibilidade que nela depusemos. Mas assim, elas têm longinquamente um valor onomatopaico a posteriori. Detendo-nos, porém, na simples relação entre a palavra e o seu significado, nós descobrimos decerto que um grande número delas tem uma intrínseco significado que em nada é arbitrário. Mas aquelas que o são sê-lo-ão mesmo? Será imaginável uma designação por mero arbítrio, parecida com o capricho? Não é mais lógico admitir que o laço de necessidade se perdeu?

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 1 (1969-1976), Lisboa, Bertrand, 1980, pp.204-205.

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