Um dia, sabe, à saída do quartel perguntei-lhe Não tens medo que os gajos te limpem? e ele todo borrado, teso como o preto patinador do jardim zoológico, disse-me que não, que não tinha medo nenhum. Eu, com medo do meu excesso de confiança principiei a pôr-me nervoso, a dizer para mim mesmo que ia tudo correr mal, que eles me iam furar as tripas, até que quando dei por mim tremia como o horizonte semi-aquático dos desertos. Só agora percebo, graças a este copo de vodka teatral, que quando nos olhámos, e os tiros já nos lambiam o suor, ele me dizia que combatia o medo com uma falsa confiança, e que eu lhe dizia que combatia a confiança com um falso medo. Dissemos isto um ao outro, como quem não diz, porque não o dissemos na verdade. Em ambos, faltou a coragem de dizer a nós próprios que fingíamos, que brincavamos ao Carnaval, que inventávamos sensações para com elas nos enganarmos. Sabe, o inimigo, do Salazar e dos seus eunucos ministros, estava ali a dois pés de distância.
António Lobo Antunes
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on quarta-feira, 14 de abril de 2010
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Telemaquia: Prosa com Direito de Resposta
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