Carta ao Pai

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Felizmente que havia algumas excepções, quase sempre quando sofrias em silêncio, e o amor e a bondade, com a sua força, se sobrepunham a tudo o resto e te comoviam. Eram ocasiões raras, mas maravilhosas. Por exemplo, quando, antigamente, nos Verões quentes, te via dormitar na loja depois do almoço, os cotovelos apoiados na escrivaninha, ou quando, aos domingos, te juntavas a nós, esbaforido, quando íamos para o campo; ou quando a mãe esteve doente uma vez e tu te agarraste à estante dos livros a tremer e a chorar; ou quando, durante a minha última doença, me vieste visitar ao quarto da Ottla, sem fazer barulho, ficaste na soleira da porta, esticaste o pescoço para me ver e acenaste só com a mão para me não me incomodar. Nessas alturas, deitava-me e chorava de felicidade, como choro agora ao escrevê-lo.

Tens também um sorriso muito especial e raro, tranquilo, satisfeito, acolhedor, e que pode fazer feliz aquele a quem se destina. Não me recordo de alguma vez na minha infância me ter sido concedido um sorriso assim, mas deve ter acontecido. Por que razão me irias tu negá-lo naquela altura, quando eu ainda te parecia ser inocente e era a tua grande esperança? Aliás, impressões mais agradáveis como essa, com o passar do tempo, só conseguiram aumentar o meu sentimento de culpa e tornar-me o mundo ainda mais incompreensível.


Kafka, Franz; Carta ao Pai; Edições Quasi; 2008
Tradução: João Barrento

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