
Estão a ver aonde quero chegar: cada livrinho individual só é possível por trazer em si, não o palerma do autor, mas uma ideia do que são em geral os livros de literatura. E há mais ideias dessas do que seria talvez aconselhável. Mas o pior é que nenhuma barra o caminho aos livros gerados por ideias rivais; e o verdadeiramente péssimo é que qualquer delas é incapaz de abortar os livros que gerou mas nunca crescerão a ponto de a substituírem, ainda menos destruírem. Estão a ver aonde quero chegar: as ideias sobrevivem aos livros mas os livros abastardam as ideias. A solução? Mais do que profilaxia impraticável dada a natureza da actividade em apreço, precisamos de cultivar as ideias e abandonar os livros que as rebaixam.
O único prejuízo das ideias de literatura são os maus acessos. Quero dizer, os acessos em mau estado. Demora-se que tempos, sobressaltos, riscos diversos, salteadores. Algumas pessoas queixam-se de se perderem… oops! descai-me o teclado para o alegórico. Voltando ao ponto, precisávamos de acessos em bom estado… que são – nem mais! – outros livros, os elevados, aqueles onde essas ideias de literatura chegaram e se abrigaram, determinadas a não ir dali a mais nenhum lado. Numa palavra, precisamos de clássicos. Poe, por exemplo; Stendhal; ou Diderot, que não sei se é clássico (deve ser).
O único prejuízo dos clássicos é serem absolutamente incapazes de se defender dos ineptos e dos arrivistas. Duradouros, mas molengas. Alguns, até frouxos. Não se protegem. Deixam-se ficar, quase melancólicos. Reconheço que se trata de aparência enganadora, mas ainda assim, ainda assim… Confiam na inteligência do leitor – valha-nos Deus! –, no discernimento da posteridade, e coisas dessas, que todos sabemos não existirem senão nas entrelinhas de uns quantos clássicos em vários volumes extensos. Proust, ou assim. Mas nunca aviltam a ideia de literatura, justiça lhes seja feita. Nunca pedem desculpa pelos próprios erros, nessa humildade palerma que por vezes cai bem entre os leitores. Nisso não são frouxos, justiça lhes seja feita. E também não se queixam, nem são invejosos, justiça lhes seja feita. Nem se gabam dos muitos milhares de exemplares que já venderam por todo o mundo, justiça lhes seja feita. Não, nada disso, os clássicos nunca deixam a literatura ficar mal, são bons para as pessoas, e as pessoas boas deviam ser boas para eles e só deviam lê-los a eles. Não sei, aliás, se não é já isso que fazem, perdão, se não é já essa a ideia que define, que distingue uma pessoa boa. Deve ser. As pessoas distintas só lêem os clássicos, perdão, as pessoas distintas só frequentam os clássicos. Assim está melhor. É assim que deve ser.
Abel Barros Baptista, LER, 1 de Junho de 2009.
Ilustração de Pedro Vieira.
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on sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
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Crónicas
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