As ratoeiras estão umas dentros das outras e disparam todas ao mesmo tempo

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"(...) Eu tentava fugir infiltrando-me com movimentos rastejantes para o centro da espiral onde as linhas serpenteavam que nem cobras seguindo a contorção dos membros de Irina, desenlaçados e inquietos, numa lenta dança, em que não é o ritmo que importa mas o juntar e o desfazer das linhas serpentinas. São duas cabeças de serpente que Irina agarra com ambas as mãos, e que reagem ao seu aperto exasperando a sua atitude à penetração rectilínea, enquanto ela pretendia pelo contrário que o máximo de força contida correspondesse a uma flexibilidade de réptil que se dobra para a alcançar em contorções impossíveis. Porque era este o primeiro artigo de fé do culto que Irina instituíra: que nós abdicássemos do preconceito da verticalidade, da linha recta, do sobrevivente secreto orgulho masculino que continuara a acompanhar-nos mesmo aceitando a nossa condição de escravos de uma mulher que não admitia entre nós ciúmes ou supremacias de género algum. - Para baixo - dizia Irina e a sua mão premia a cabeça de Valeriano na nuca, afundando os dedos nos cabelos lanosos de cor ruiva de estopa do jovem economista, sem deixá-lo erguer a cara acima do seu regaço - mais para baixo! - e entretanto olhava-me com olhos de diamante, e queria que eu olhasse, queria que os nossos olhares seguissem também por caminhos serpentinos e contínuos. Eu sentia o seu olhar não me abandonar um só instante, e entretanto sentia sobre mim outro olhar que me seguia a todo o momento e em toda a parte, o olhar de um poder invisível que de mim só esperava uma coisa: a morte, não importa se a que devia levar os outros se a minha. Esperava o instante em que o laço do olhar de Irina afrouxasse. Ei-la semicerrar os olhos, eis-me a rastejar na sombra, atrás das almofadas dos sofás do braseiro, onde Valeriano deixou a sua roupa dobrada em perfeita ordem como é seu hábito, rastejo na sombra das pestanas de Irina cerradas, procuro nos bolsos, na carteira de Valeriano, escondo-me nas trevas das pálpebras fechadas dela, nas trevas do grito que sai da sua garganta, acho a folha dobrada em quatro com o meu nome escrito a aparo de aço por baixo da fórmula das condenações à morte por traição, assinada e confirmada com os carimbos regulamentares."

CALVINO, Italo,
Se numa noite de Inverno um viajante, Porto, Público Comunicação Social, 2002

Tradução: José Colaço Barreiros, Teorema

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3 comentários

Ora aí que está um autor que eu aprecio.

E entre as minhas duas profissões (infelizmente nenhuma ligada aos prazeres do espírito) vou fazendo um esforço para arranjar tempo para ir lendo esta surpreendente obra.

Belas citações por aqui.

E as referências bibliográficas sempre feitas de forma impecável.

Continuem assim.

27 de fevereiro de 2010 às 22:28

Oh Ega, o seu blog não tem espaço para comentários?

27 de fevereiro de 2010 às 23:50

Chaperon Rouge,

O ME não tem comentários por uma razão simples: não os merece.

28 de fevereiro de 2010 às 14:03

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