[...] Havia muito que qualquer coisa em si medrava como o fungo nas espigas verdes. Cresciam-lhe na cara gomos de carne dura, insensível e vermelha. Desconhecia, porém, a gravidade do mal, e ninguém, até ali, tivera a crueldade de lho nomear. Amofinado de angústia, estudava no espelho, com minúcias de investigador, as subtis modificações da expressão, a transfiguração progressiva do rosto, mas o chamadoiro da sua desgraça era um mistério. E o que o coração temia sem saber, o que a razão não descobrira claramente, estava ali irreparável e cruel: leproso!
Calou-se, engoliu a custo duas garfadas, foi pôr a malga quase intacta no cesto, e sentou-se a uma sombra, a bater estùpidamente com um pedaço de pedra no moirão da ramada.
- Ó Julião, tu parece que não esperavas pela resposta? - gracejou um companheiro.
- Não...
Eram todos amigos, daquela amizade possível entre gente rude e sacrificada, sem licença para aventuras intensas do coração e do entendimento. Escravos de uma terra hostil e de uma sociedade hostil, simples e toscos instrumentos de produção nas mãos injustas da vida, como poderiam eles descer à grande fundura dos sentimentos limados e gratuitos? Gostavam dele como de um camarada de suor, prontos evidentemente a abandoná-lo se lhes disputasse a bica de água ou a sombra do descanso.
- Não faças caso, homem!
Mas também eles tinham ouvido a palavra reveladora, e também eles acordavam para uma compreensão exacta do seu significado. E ao despegar, à noite, havia já em todos um sentimento de cautela, de resguardo, que insensìvelmente os ia afastando como de coisa imunda e contagiosa. [...]
TORGA, Miguel, "O leproso", Novos Contos da Montanha, 6ª ed. revista, Coimbra, Coimbra, 1975, pp. 66, 67.
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ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA AMIGOS DE RAOUL FOLLEREAU: http://www.aparf.pt/
Calou-se, engoliu a custo duas garfadas, foi pôr a malga quase intacta no cesto, e sentou-se a uma sombra, a bater estùpidamente com um pedaço de pedra no moirão da ramada.
- Ó Julião, tu parece que não esperavas pela resposta? - gracejou um companheiro.
- Não...
Eram todos amigos, daquela amizade possível entre gente rude e sacrificada, sem licença para aventuras intensas do coração e do entendimento. Escravos de uma terra hostil e de uma sociedade hostil, simples e toscos instrumentos de produção nas mãos injustas da vida, como poderiam eles descer à grande fundura dos sentimentos limados e gratuitos? Gostavam dele como de um camarada de suor, prontos evidentemente a abandoná-lo se lhes disputasse a bica de água ou a sombra do descanso.
- Não faças caso, homem!
Mas também eles tinham ouvido a palavra reveladora, e também eles acordavam para uma compreensão exacta do seu significado. E ao despegar, à noite, havia já em todos um sentimento de cautela, de resguardo, que insensìvelmente os ia afastando como de coisa imunda e contagiosa. [...]
TORGA, Miguel, "O leproso", Novos Contos da Montanha, 6ª ed. revista, Coimbra, Coimbra, 1975, pp. 66, 67.
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on domingo, 31 de janeiro de 2010
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