"As utopias de José Tolentino Mendonça, um padre-poeta"

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Entrevista de Ana Soromenho e Christiana Martins a José Tolentino Mendonça - Expresso de 27 de Junho de 2009 - Revista Única, pp. 30-36

Quando o desafiámos para esta conversa disse que o tema da utopia o interessava muito.
Em tempo de crise, o nosso défice de esperança obriga-nos a relativizar o futuro. Para os cristãos, o presente é resgatado pelo futuro. Nenhum presente, individual ou colectivo, é capaz de dar todas as respostas. Todos os homens morrem sedentos. Utopia, literalmente, é o não-lugar. É também indutora do caminho e das expectativas. Induz à viragem e à inquietação em relação aos paradigmas, que se apresentam como fatalidades. Os utopistas nunca são muito bem olhados pelo seu presente. São provocadores e contagiadores.

Fala em esperança. Não foi uma palavra banida no nosso tempo? Em termos de tecnologia e da ciência, em relação ao homem de há dois mil anos, construímos um abismo. Mas, em relação ao que é o sentido da vida, estamos atrás. Não podemos adoptar a ideia de progresso porque não sabemos mais sobre o Homem do que um sábio de há vinte mil anos. Há textos milenares que têm um conhecimento sobre a profundidade do ser humano que hoje raramente encontramos.

Só ganhámos em conhecimento científico? Conseguimos mapear a biologia humana mas não o nosso coração. O homem continua a ser um mistério para si mesmo.

E não foi sempre? A dificuldade é vivermos num tempo de proliferação de saberes, mas falta-nos uma sabedoria que nos ensine a enfrentar os grandes embates. As dimensões fundamentais da vida, como a relação com a morte, tornaram-se num tabu. À maneira das sociedades mitológicas, o que não queremos ver ou não sabemos explicar, mantemos sob grande ocultação.

Nas sociedades mitológicas atribuía-se ao desconhecido valores simbólicos. E hoje há uma miséria simbólica. À força de sermos consumidores, telespectadores, utentes, esquecemos a nossa condição de criadores de símbolos. Por esse processo de acumulação, o mundo fala menos ao homem.

[...]

Num momento de crise porque é tão difícil "partilharmos a mesma refeição"? Uma mesa onde todos comem do mesmo pão teve um preço, que foi a morte de Jesus. Não conseguimos mudar o mundo sem ir até ao extremo da dádiva. Isto é um discurso ao arrepio das nossas utopias muito domésticas.

Acredita nessa utopia? Sim, as grandes transformações implicam um dádiva radical.

Somos capazes desse extremo? Individualmente chegamos lá: os pais sentem que dão a vida pelos filhos, as pessoas que dão a vida pelo que fazem, pelo que sonham. Mas comunitariamente temos mais dificuldade.

Escreveu sobre a palavra que Deus disse a Caim, "timshel" (tu podes). Lembra o "we can" de Obama. É um discurso messiânico? Para mim, o messiânico tem de ter uma dimensão total. A política é apenas uma parte. Um dos problemas da nossa sociedade é ser contraditória: há uma alergia e, simultaneamente, uma obsessão pelo político.

Interessa-lhe mais o individual do que o colectivo? Interessam-me aqueles que têm a liberdade para pensar. Por exemplo, a mim interessa-me muito o que um escritor pensa.

Que escritor? Corman McCarthy, por exemplo. Interessam-me as palavras que nos chegam de um grande silêncio... Mas quero voltar à mesa. Porque é que a refeição é tão importante? Porque é à volta da mesa que partilhamos os códigos simbólicos fundamentais. É transversal às culturas e aos tempos. A mesa é tão importante numa comunidade de aborígenes como num liceu em Nova Iorque.

Cada vez nos sentamos menos à mesa. Esvaziou-se. É verdade. Mas há sempre essa nostalgia. E esse esvaziamento reflecte também as feridas de uma desestruturação profunda e de uma crise antropológica, mas continua a ser uma utopia fortissima.

[...]

Como explica a fé? Quando o procuram, o que diz? Tenho muita paciência (risos)...

Sempre teve fé? Sim, embora sempre questionada. Há uma romancista americana, Flanery O'Connor, de quem gosto muito, que diz que ter fé é mais difícil do que não ter. A fé uma luta, um espinho na carne, uma tensão e uma permanente atenção. Tem essa dimensão utópica, que não nos deixa fechar, mas é peregrinação e nomadismo interior.

Porquê? Porque é uma gramática, obriga a buscar e a viver mais do desejo. Não se encontra. Quer-se sempre mais.

Como não se encontra, se está presente? Está presente como um mapa que nos é dado, mas não pode ser só isto. Como dizia Mário de Sá Carneiro: "Um pouco mais de azul, eu era além, um pouco mais fogo e eu era brasa". Sentimos que o mundo, e aquilo que conseguimos fazer, ainda é um lugar intermédio. Ainda é um momento. É provisório.

[...]

Entrou na Igreja pelo Cântico dos Cânticos. E gostava de sair. Este Verão quero reunir várias versões de escritores portugueses do Cântico dos Cânticos, escrever um ensaio e publicar. Tenho muita inveja da morte de São Tomás de Aquino - um intelectual impertinente, que trocava toda a riqueza do mundo por um tratado de Aristóteles. Ao morrer, pediu que lhe lessem o Cântico dos Cânticos. Era assim que eu gostava de morrer.

Não tem medo da morte? Não. Tenho medo e respeito pelo sofrimento. Mas sinto que posso partir a qualquer momento. Tenho essa liberdade.

Sente que vai ter um encontro? Sinto. São Paulo diz que agora vemos como num espelho e de forma confusa, o que depois veremos face a face. Acredito nesse face a face. Gosto muito de um poema do Fernando Pessoa, que para mim é uma oração. É um bocadinho heterodoxo, mas eu rezo muito: "Ave passa e ensina-me a passar." Essa passagem silenciosa ensina-me a não deixar rasto.

No entanto, escreve. Vai deixar rasto. Tudo isso vai ser esquecido.

Então, porque publica? Porque falamos uns com os outros, acompanhamo-nos. Ser companheiro é partilhar o mesmo pão, a mesma palavra, que é a palavra poética. Interessa-me a poesia como forma de resistência. Não acredito na poesia como forma de imortalidade. A Divina Comédia ainda é um manual de resistência. Não é uma estátua a Dante Alighieri.

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