Se podes olhar, vê e se podes ver, repara

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Não tinha ocorrido à mulher do médico a probabilidade de que das torneiras das casas poderia não estar a sair sequer uma gota do precioso líquido, é o defeito da civilização, habituamo-nos à comodidade da água encanada, posta ao domícilio, e esquecemo-nos de que para que tal suceda tem de haver pessoas que abram e fechem válvulas de distribuição, estações de elevação que necessitam de energia eléctrica, computadores para regular os débitos e administrar as reservas, e para tudo faltam os olhos. Também os faltam para ver este quadro, uma mulher carregada com sacos de plástico, andando por uma rua alagada, entre lixo apodrecido e excrementos humanos e de animais, automóveis e camiões largados de qualquer maneira e atravancando a via pública, alguns com as rodas já cercadas de erva, e os cegos, os cegos, de boca aberta, abrindo também os olhos para o céu branco, parece impossível como pode chover assim. A mulher do médico vai lendo os letreiros das ruas, lembra-se de uns, de outros não, e chega um momento em que compreende que se desorientou e perdeu. Não há dúvida, está perdida. Deu uma volta, deu outra, já não reconhece nem as ruas nem os nomes delas, então, desesperada, deixou-se cair no chão sujíssimo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as forças, desatou a chorar. Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele. Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas, viu que tinha diante de si um grande mapa, desses que os departamentos municipais de turismo espalham no centro das cidades, sobretudo para uso e tranquilidade dos visitantes, que tanto querem poder dizer aonde foram como precisam saber onde estão.

José Saramago, Ensaio sobre a cegueira

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1 comentários

Anónimo  

Já fui, já fui! =P

27 de novembro de 2008 às 13:26

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