A rotina e o gato

Posted by Actia in

Se Durtal chegasse a casa antes das onze da noite, tinha-o à espera antes da porta do vestíbulo; arranhava a madeira, e mesmo antes de ele entrar na sala começava a miar; depois movia as langorosas íris de ouro verde, esfregava-se contra as calças, saltava para cima dos móveis, punha-se de pé a imitar um pequeno cavalo empinado; e quando Durtal se aproximava, por amizade dava-lhe grandes cabeçadas. Depois das onze não ficava à frente dele, limitava-se a arquear o dorso mas sem carícias; e se ainda era mais tarde ficava quieto, lamentava-se e grunhia, caso ele se atrevesse a alisar-lhe o alto da cabeça ou a coçar-lhe o pescoço debaixo do queixo.
Naquela manhã, impacientou-se com a sua preguiça; assentou o traseiro na cama, arqueou-se, depois aproximou-se sub-repticiamente e voltou a sentar-se a dois passos da cara do dono, observando-o com um olhar de atroz falsidade, querendo isto dizer que devia pôr-se dali para fora e deixar-lhe o lugar quente.
Divertido com esta táctica, Durtal não se mexeu e por sua vez olhou para ele. Era enorme, vulgar e no entanto estranho naquela veste com o meio ruivo da cinza de um velho coque, e cinzento como o pêlo das vassouras novas, aqui e além com pequenos aflocados brancos como as pelugens que volteiam sobre os tições mortos. Era um autêntico gato de telhado, alto de patas e comprido, com uma cabeça de fera muito regularmente estriada por ondas de ébano que rodeavam com braceletes negros e lhe alongavam os olhos com dois ziguezagues de tinta.
- Apesar do teu feitio desmancha-prazeres de solteirão monómano e sem paciência, és delicado - disse Durtal num tom insinuante para o animar.

Huysmans, J.-K.; Além; trad. Aníbal Fernandes, Lisboa; Assírio e Alvim; 2006

This entry was posted on domingo, 21 de março de 2010 at domingo, março 21, 2010 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

0 comentários

Enviar um comentário