Um último poema de Álvaro de Campos

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Um último poema de Álvaro de Campos

Sonhei com Tavira
E pus na minha mala de engenheiro
Todo o bafio de um’alma cansada.

Por que não me quiseste matar a in-existência?
Por que não morri eu contigo, se era a lógica do fingimento?
Fiquei com sono de mim,
Preso entre o não-ser e o ser abstractamente irregular,
Esquecido, só e impossivelmente real
Como um trapo sujo, rasgado e transparente...

E sempre esta angústia.
Esta velha angústia que despedaçou o universo da calçada
Em que passeio, estúpido e lúcido
Como um cão que condenaram ao abate.

Acendo um cigarro.
Que saudades do que não fui...
O tempo em que ia para aquele cais rebolar a minha infância
(e apertava no peito todas as sensações marítimas!...)
E o vento que me batia na face só anunciava odes e viagens.

Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas...

Tardou o apito...
Tiro dos bolsos do passado a fotografia a preto e branco
E pego nesse teu dedo, agora osso
E mergulho-o na água límpida da minha infância.
Quero regressar a Tavira e obrigo-te a escrever-me de novo...

(E eu, condenado ao limbo metafísico
Embarco, sereno e absoluto para a parda fotografia
E levo os pincéis de outrora e irei ingénuo
Pintá-la com as cores alegres da infância.)

f., 2.ºano da faculdade.

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