Self Service - uma vida de cão

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Não
não é a poesia caixa de música
ou a poesia piolho místico enterrado no sebo destes dias
ou qualquer outra
que podem dissolver a tua alma
tão problemática
no vinho da beatitude
Ah
o «mistério» da poesia a poesia
técnica da confusão
a capelista poética e os primeiros fregueses
ainda a medo ainda receosos
de te pedirem a Dor em alfinetes que não tenhas
logo ali à mão
E quando dizes «Poesia» eu tenho nojo
aquele nojo violento que me dá
o olhar furtivo a atenção desatenta
dos que se demoram nos lavabos das salas dos cinemas
de mão distraídas procurando
a solução da noite
Instalaram-se em ti
a mesma contracção suspeita
a mesma hipocrisia o mesmo sobressalto
a mesma curva obscena
que o olhar descreve
goza
e disfarça
Quando dizes «Poesia» dizes medo
dizes família tradição classe
e a vida de cão que te esperava
e que é hoje a tua vida «transcendente»
vida de cão
Ensinaram-te palavras que pareciam
prontas a derrotar quem as ouvisse
ensinaram-te gestos para elas
e a tal ponto te humilharam
que te puseram de pé
limpo
inteligente
e aprumado
Pronto a seguir
seguiste
e agora estás aqui
estás aqui pois claro
angustiado e iludido
mas deliciado
Até aos últimos arcanos
cafés e leitarias
seguiste André Breton
ou a sombra dele
e a aventura mental que procurava
um sinal exterior
um estilhaço vivo do acaso
a Nadja lisboeta que salvasse
ou a noite ou a vida
acabou em «bons» poemas «maus» poemas
em palavras e palavras
E coberto de palavras enterrado
numa terra de murmúrios e gemidos
teu coração já nada faz mover
senão moinhos de palavras
e «a dor é grande» dizes tu
«mas sublime»
Mas não sou eu que te lamento
Os teus mitos esperam-te
já impacientes
Talvez me encontres
talvez possa fazer qualquer coisa por ti
qualquer coisa simples
quase inútil
quase ridícula
oferecer-te uma sílaba
um conselho
um cigarro

Alexandre O’Neill

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