Bagatelas

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―Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, é uma bagatella... Mas emfim, constituem um começo; são uma ligeira habilitação para conquistar a felicidade. Agora pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, está decrepito e está gottoso: como homem, como funccionario do celeste imperio, é mais inutil em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um cão esfomeado. Mas a transformação da substancia existe: garanto-lh'a eu, que sei o segredo das coisas... Porque a terra é assim: recolhe aqui um homem apodrecido, e restitue-o além ao conjuncto das fórmas como vegetal viçoso. Bem póde ser que elle, inutil como Mandarim no Imperio do Meio, vá ser util n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso repôlho. Matar, meu filho, é quasi sempre equilibrar as necessidades universaes. É eliminar aqui a excrescencia para ir além supprir a falta. Penetre-se d'estas solidas philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia por vêr florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma flôr consolaria aquella desherdada; mas na disposição dos sêres, infelizmente, n'esse momento, a substancia que lá devia ser rosa é aqui na Baixa homem d'Estado... Vem então o fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a materia começa a desorganisar-se, mistura-se á vasta evolução dos atomos―e o superfluo homem de governo vai alegrar, sob a fórma de amor perfeito, a agua furtada da loura costureira. O assassino é um philanthropo! Deixe-me resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota traz-lhe á algibeira alguns milhares de contos. Póde desde esse momento dar pontapés nos poderes publicos: medite na intensidade d'este gozo! É desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse maximo da gloria humana! E agora note: é só agarrar a campainha, e fazer ti-li-tin. Eu não sou um barbaro: comprehendo a repugnancia d'um gentleman em assassinar um contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e é repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum d'esses espectaculos torpes... É como quem chama um criado... E são cento e cinco ou cento e seis mil contos; não me lembro, mas tenho-o nos meus apontamentos... O Theodoro não duvída de mim. Sou um cavalheiro:―provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na primeira insurreição da justiça, me vi precipitado d'alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um trambulhão consideravel, meu caro senhor! Grandes desgostos! O que me consola é que o OUTRO está tambem muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas contra si um Satanaz, tira-se bem de difficuldades mandando carregar mais uma legião d'archanjos; mas quando o inimigo é o homem, armado d'uma penna de pato e d'um caderno de papel branco―está perdido... Emfim são seis mil contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha, seja um homem.


Eça de Queirós, O Mandarim

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