A trágica história de António Serrão de Castro

Posted by F. F. in

Um dos casos mais impressionantes relativos a judeus portugueses no século XVII é o de António Serrão de Castro, estabelecido em Lisboa com botica, estabelecimento a que hoje chamaríamos "farmácia". Serrão de Castro provinha de uma família de cristãos novos mas toda a prática da sua vida dava a entender que renegara a religião dos seus antepassados mais remotos, o que procurava demonstrar, em sua casa, com a exibição de grande cópia de imagens de Cristo, de Nossa Senhora e de santos nas paredes e sobre um oratório. Além disso fora escolhido para tesoureiro da irmandade do Santíssimo da freguesia de S. Nicolau, o que o punha a coberto de qualquer suspeita de falso cristão. Sucedeu porém que certo Fernão Peres informou o Santo Ofício, com razão ou sem ela, de que Serrão de Castro vestia camisa lavada aos sábados, o que era sinal de judaísmo. O homem, já com sessenta e dois anos, foi preso,me sucessivamente duas irmãs que tinha, já idosas, mais seus quatro filhos, e também diversos frequentadores da botica que aí se reuniam para conversar e passar o tempo. Castro e seus familiares, sujeitos a torturas nas salas da Inquisição, acusaram-se uns aos outros e declararam tudo quanto os inquisidores pretendiam. Todos, menos um dos filhos que era estudante de Teologia e que talvez, por isso, fosse cristão convicto, foram submetidos àqueles martírios. Como porém Serrão de Castro não declarou entregar-se a práticas de judaísmo mantendo-se sempre na negativa a tal respeito, suportando os tormentos e implorando o amparo dos santos para aguentar as dores, o Santo Ofício considerou-o teimoso e embusteiro e manteve-o preso durante onze anos, de 1672 a 1682, nos seus cárceres. Entretanto foi obrigado a fazer parte de um auto político de fé e de envergar hábito de penitenciado para que as pessoas na rua, ao reconhecerem-no, o repelissem e injuriassem quando passassem por ele. Antes de sair em liberdade os inquisidores entregaram-lhe uma lista com a indicação das missas a que deveria passar a assistir daí para o futuro e das orações que deveria fazer, confiscaram-lhes os bens a favor do cofre do Santo Ofício, e só então o mandaram embora, cego e miserável. António Serrão de Castro era poeta, e é por essa razão que aqui o recordamos. A veia poética ajudou-o a suportar os onze anos de encerramento no cárcere, num cubículo mal arejado e mal cheiroso, partilhando a sua miserável comida com os ratos que passavam pelo sobrado. Os irrequietos companheiros proporcionaram-lhe a escrita de um poema, os Ratos da Inquisição, onde o poeta comenta:

Quando em rapaz me nascia
em minha boca um dentinho,
que me nascia um ratinho,
então minha mãe dizia;
mas agora que à porfia
caindo todos me vão,
vós, ratinhos, sem razão,
vindes com pressa não pouca
não a nascer-me na boca
mas a tirar-me dela o pão. (1)

É muito possível que Serrão de Castro pretendesse jogar às escondidas com as palavras, e que os ratos do poema não fossem os lépidos roedores que o espiavam no cárcere, mas os próprios inquisidores. Alguém assim o pensou ao ter notícia dos versos e deste modo o interpelou:

Judeu de mau proceder
que, se em teus versos discorro,
logo pareces cachorro
no ladrar e no morder.
Ainda espero ver-te arder
pois com tanta sem-razão
murmuras da Inquisição;
porém é força do teu erro
se te tratam como perro
que te vingues como cão. (2)

A janela do cárcere de Serrão de Castro deitava para um espaço privado de cujo solo se erguia o tronco de uma ameixoeira. O pobre homem pousava os olhos naquela árvore, e por ela media o tempo da sua solidão. Olhando-a através das grades da janela, dia após dia, durante mais de dez anos, viu-a encher-se de folhas, de flores e de frutos, sucessivamente, por onze anos. O prémio de tão amargurado sofrimento foi o belo soneto que nos legou:

Onze vezes de folhas revestida,
onze vezes de flores adornada,
onze vezes de frutos carregada
te vi, ameixoeira, aqui nascida.

Outras tantas também te vi despida,
de folhas, flores, frutos despojada,
pelo rigor do inverno saqueada
e seco tronco toda reduzida.

Também a mim me vi já revestido,
de folhas, flores, frutos adornado,
de amigos e parentes assistido.

De todos eis-me aqui tão desprezado;
mas tu voltas a ter o que hás perdido,
e eu não terei jamais o antigo estado. (3)


(1) O poema só foi publicado pela primeira vez duzentos anos mais tarde por Camilo Castelo Branco, em Os Ratos da Inquisição, Porto, 1883. O texto transcrito corresponde à 1.ª estância do Canto II do poema, p. 129.
(2) Camilo (...) não diz quem seja o poeta que tão odiosamente ripostou a Serrão Castro.
(3) Camilo, op. cit., p. 67-68.


N.B.: As notas correspondem ao número 277, 278 e 279 do livro.

Rómulo de Carvalho, O texto poético como documento social, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 199-201.

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